segunda-feira, 7 de julho de 2014

Transporte público e pobreza no Brasil

Quando surge um contexto para conversas sobre transporte público no consultório (alguém que justifica seu atraso por conta do trânsito, por exemplo) e de alguma forma eu deixo escapar que também venho ao trabalho de ônibus, logo escuto de volta o seguinte: "mas o doutor não vem de carro?".


Ao mesmo tempo em que revela uma sensação de estranheza do meu interlocutor, este tipo de comentário me gera uma estranheza semelhante pois hoje em dia é relativamente fácil ter um carro, não se tratando mais de um benefício restrito à "doutores" (termo horrível a propósito, que serve apenas para acentuar uma hierarquização desnecessária nas relações humanas). Entretanto, o estigma social continua. Ao usar o transporte público não estou fazendo jus à minha suposta condição de "doutor": devo ser um psicólogo iniciante, incapaz, que precisa subir e aprender muito na vida para adquirir um carro. As caras e bocas que eu vejo com frequência no consultório durante estas conversas me sugerem isto - o estranhamento alheio diz muito.

Trocando em miúdos: transporte público é coisa de pobre. Como "pobreza" é frequentemente algo associado a "vagabundagem, incapacidade intelectual, falta de vergonha na cara" dentre outros adjetivos pejorativos, logo, justifica-se um pouquinho a existência de dúvidas sobre meus valores e habilidades profissionais. Existe uma complexa rede simbólica que ligam estes pontos.




Comentário inspirado por esta reportagem: http://oglobo.globo.com/rio/o-que-famosos-que-usam-transporte-publico-acham-do-sistema-no-rio-11937509 

*originalmente publicado no Facebook - dia 28/03/2014

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